Doping nas alturas: a polêmica do gás xenônio no Everest 6v2x2c
Ao usar a substância proibida em disputas esportivas, um grupo de alpinistas do Reino Unido deflagra barulho inédito 6ns1w

A resposta ainda hoje soa com ironia, entre a provocação e o desafio. Em 1924, antes de tentar subir ao cume dos 8 849 metros do Everest, o alpinista britânico George Mallory foi instado a dizer por que decidira enfrentar a expedição rumo ao topo: “Porque está lá”. A máxima virou dístico dos montanhistas que sonham cravar bandeira no pico da Cordilheira do Himalaia, entre o Nepal e o Tibete. Sim, está lá, e os 7 269 seres humanos que findaram a aventura, em 100 anos de história, só venceram o obstáculo porque puderam complementar o que lhes faltava no ar rarefeito: oxigênio. Na semana ada, contudo, o anúncio de uma conquista tornou turvo o ambiente alvo da neve que não derrete: um grupo de quatro ex-militares britânicos, acompanhados de um fotógrafo e cinco xerpas — os heroicos autóctones que servem de guia e carregadores de bagagem —, subiram e desceram o colosso em apenas uma semana, tempo recorde. Deu-se o assombro, dado serem necessárias semanas, por vezes meses, de aclimatação com a altitude.
O grupo reconheceu ter usado o gás xenônio por ao menos dez semanas antes de pousar no sopé do Everest e dali ir ao céu. Por meio de máscaras atreladas a ventiladores, pouco a pouco, na fase de preparação, iam recebendo doses cada vez mais volumosas da nobre substância — nobre do ponto de vista químico, porque entre os esportistas de cordas e mosquetões o xenônio é um anátema, e usá-lo fere a ética estabelecida.
Inodoro e incolor, usado na fabricação de lâmpadas, é aliado anestésico em procedimentos cirúrgicos e chegou a ser apontado como eficaz até para o controle do Alzheimer. Entre atletas, contudo, é tido como doping. Explica-se: a inalação de xenônio aumenta a produção de uma proteína que estimula a produção de um hormônio, o EPO, responsável pela regulação de glóbulos vermelhos no organismo, vetores do transporte de oxigênio pelo corpo. Não por acaso, em 2014 a Agência Mundial Antidoping, a WADA, proibiu seu uso em competições olímpicas. Naquele ano, campeões russos itiram ter competido com a muleta do xenônio nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi. As escaladas, contudo, não têm organização esportiva que ampare o que é lícito e proíba a contrafação. Resultado: imenso barulho.
Waldemar Niclevicz, o primeiro brasileiro a chegar ao topo do Everest, em 1995, na companhia de Mozart Catão, não mede palavras ao cutucar a glória de quem anda no acostamento, à margem do combinado, ainda que não estabelecido por regras pétreas. “É doping, sim, e as pessoas se dopam porque não querem ficar com dor de cabeça. Não que eu queira ficar com dor, mas é uma reação natural dos seres humanos. Ela melhora à medida que aumenta a capacidade de absorção do pouco oxigênio oferecido pela natureza.” De modo ainda mais claro: os tanques de oxigênio, o.k., estão dentro do esperado desde sempre, como mostram antigas fotografias na “mãe de todas as montanhas”.

Mas, xenônio? Seria imoral, e daí brotam as reações mercuriais de quem se sentiu ferido. A União Internacional das Associações de Alpinismo, de poder , apenas consultivo, divulgou um comunicado alertando para os perigos do ruidoso fluido. Para autoridades do governo nepalês, “escalar em apenas quatro ou cinco dias vai contra os valores e normas tradicionais que nós, xerpas, respeitamos”. O diretor do departamento de turismo do Nepal também se pronunciou, dizendo que o uso do xenônio era “contra a moral da escalada”.
Há ainda um espesso nó: o xenônio, ao oferecer “milagres”, facilitaria o o ao Everest, ampliando o número de turistas e de aventureiros, na acepção pejorativa do termo. É briga atual, pelas filas infindáveis, pelo acúmulo de lixo. Em 2001, 182 pessoas chegaram ao fim da mítica trilha. No ano ado, foram 861. É muita gente. Não se trata de navegar contra os avanços da ciência, porque o xenônio tem benefícios, mas não convém pegar a estrada da desonestidade, nunca. “Há quem suba o Everest apenas pelo ego, sem amor ao lugar e seus habitantes”, diz Niclevicz. É isso.
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947