O declínio da onda woke h1k2z
Quem define os critérios de gênero ou raça dita o lugar de fala e silêncio 6v4153

“O MIT vive de talento”, disse Sally Kornbluth, presidente do instituto. “Nosso sucesso depende de atrair pessoas incrivelmente talentosas, de todas as origens e perfis, e garantir que todos aqui se sintam acolhidos”, completou. O MIT é uma das grandes universidades americanas, com 97 prêmios Nobel, e vinha enfrentando problemas. Agora deu uma virada. Fechou seu escritório ligado a temas de “diversidade” e claramente faz um recuo na chamada onda woke, como tantas outras empresas. Nada a ver com Trump. A universidade já havia eliminado as “declarações de diversidade” para professores, porque feriam a liberdade de expressão e “não funcionavam”. Eram uma maluquice. A universidade abria uma vaga em física nuclear e os candidatos precisavam descrever suas visões sobre “inclusão e pertencimento”. Na prática, funcionava como critério ideológico para contratações. Agora os ventos mudaram, e uma “visão baseada no mérito” reassume seu posto.
São mudanças sensatas. A universidade não abrirá mão de programas de inclusão. Bolsas, oportunidades, não discriminação. Mas deixará de confundir essas coisas com ideologia. Imposição de linguagem, cancelamentos, proibições a divergentes. Tempos atrás, causou furor quando o MIT proibiu a conferência do professor Dorian Abbot, prestigiado pesquisador em geofísica, de Chicago, por suas críticas aos programas inclusivos. Na prática, a turba ativista fez seu “cancelamento” na internet, e a universidade cedeu. Por medo, esse velho conhecido. Quando uma universidade faz uma coisa dessas, é sinal de que amos do ponto. O mercado percebe, há perda de reputação, de competitividade, a liberdade acadêmica escorre pelo ralo, em especial nas ciências humanas. E o ambiente geral, que deveria ser aberto ao dissenso, vai sendo pautado pelo “cuidado com o que se diz”.
Lendo sobre estas coisas, me deparei com o relato de um professor californiano que viveu processo semelhante. “Tudo começou quando alguém sugeriu, em uma reunião qualquer, que era preciso cuidar da diversidade.” Foi há dez anos, e todo mundo achou ótimo. Com o tempo, deu-se um tom surrealista. “A cada quatro mensagens que recebia”, diz ele, “uma tratava de temas identitários”. Dois terços eram assuntos de gênero, uma outra parte, de raça. O resto, quase nada, sobre alguma questão de orientação sexual ou pessoas com deficiências. “O resto da diversidade humana não existia”, concluiu. Eram as identidades invisíveis. A neurodiversidade, os idosos e tudo que diga respeito à pluralidade de ideias. E, por óbvio, gêneros, raças e orientações sexuais “errados”.
“Quem define os critérios de gênero ou raça dita o lugar de fala e silêncio”
Seu relato não é propriamente grande novidade. De minha parte, soa fascinante o lado filosófico disso tudo. Um deles trata do critério. A velha e conhecida lógica dos grupos de pressão definindo quais identidades seriam mais ou menos (ou nem um pouco) consideradas. Se os “velhos” não tinham relevância, não era porque sua identidade era intrinsecamente inferior à identidade feminina. Ou porque exista algum mandamento divino pondo ordem nestas coisas. Simplesmente não havia grupos de idosos cancelando ninguém na internet. Ou fazendo pressão para proibir isto ou aquilo. Sob certo aspecto, é legítimo. O mesmo que ocorre com a escolha pública nas democracias, mimetizado na estrutura de direitos, no mercado ou para as estruturas simbólicas, ligadas a formas de reconhecimento e “protagonismo”.
Pensando nisso voltei a ler um magnífico livro, Identidade e Violência — A Ilusão do Destino, de Amartya Sen. Sen é um economista indiano, ganhador do Nobel de Economia, um dos inspiradores do IDH. Ele soube criar uma visão complexa da sociedade, que chamou de abordagem das “capacidades”. A tese ecoa Aristóteles e sua noção de eudaimonia — a ideia de que o bem humano supremo reside no florescimento individual. Na vida orientada pela excelência ou, em termos modernos, na melhor versão de si mesmo de cada um. Por óbvio, é visão liberal da vida. Diria: a visão de um “estrangeiro”. De um indiano vivendo em Massachusetts, vivenciando um mundo por vezes hostil, mas sedutor. Daí vem sua crítica à obsessão por enquadramentos identitários. Algo que ele chama de uma abordagem “solitarista” . No mundo real, diz, “a mesma pessoa pode ser, sem qualquer contradição, um norte-americano, de origem caribenha, anteados africanos, cristão, liberal, vegetariano, corredor de longa distância, professor, romancista, feminista, heterossexual, defensor dos direitos de gays e lésbicas, ativista ambientalista, entusiasta do tênis, jazzista e alguém totalmente convencido de que existem seres inteligentes no espaço cósmico”. O ponto é dizer que não a de arbitrariedade definir o que é realmente relevante para cada pessoa. A identidade na qual você, que tem o poder em alguma organização, ou de gritar mais alto em um punhado de reuniões, quer que as pessoas se encaixem.
A ideia sensata de Sen: reduzir as pessoas a seu pertencimento grupal supõe risco. Grupos aproximam quem está dentro, mas tendem a instigar o sentimento de “distância e divergência” com a tribo do outro lado do rio. Um instinto tribal de má lembrança, historicamente associado a raça, nação, religião ou ideologia. É uma forma sutil de violência: o empobrecimento do indivíduo, que a a ser definido por seu pertencimento coletivo. É caminho na contramão de alguns dos melhores valores da tradição moderna. Em particular a troca da infinita diversidade que marca a experiência humana pela lógica do enquadramento. John Stuart Mill diria: pelo “formulário”. Lógica empobrecedora, mas fonte de poder. Quem define os critérios relevantes, sejam de gênero ou raça, dita as regras do jogo. E o lugar de fala, tanto quanto o lugar de silêncio. Por fim, vai se flexibilizando o valor da igualdade de todos diante da lei e em “consideração e respeito”. Entram o “direito de não ser ofendido”, o direito a ser celebrado e, quem sabe — ao menos no Brasil —, o direito seletivo a não ser objeto de uma piada.
Amartya Sen abre seu livro contando que um dia chegou no aeroporto de Heathrow, em Londres, e deu seu endereço na imigração: “Casa do diretor, Cambridge”. “Você é amigo dele?”, perguntou o funcionário, sem suspeitar que aquele indiano poderia ser, ele mesmo, o diretor. Depois de pensar um pouco, Sen respondeu: “Sim, sou”. A vida seguiu, mas aquela imagem ficou. O preconceito pode surgir onde menos se espera. Mesmo naqueles espaços que se imaginava feitos sob medida para produzir uma ideia muito própria de justiça. É isso. Toda engenharia social que enquadra e empobrece a riqueza infinita da experiência humana não a, lá no fundo, de um princípio de distopia. Por vezes lento, por vezes muito sutil. Mas sempre desumanizador. E quem sabe seja por isso que muita gente, como ocorreu agora com o MIT, venha revisando alguns velhos conceitos.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947